MPRN ataca impunidade, desengaveta crimes esquecidos e leva antigos foragidos à cadeia
“Eu não tinha mais esperanças. Cheguei a acreditar que ele nunca pagaria pelo que fez comigo. Então, depois de 24 anos, soube que ele tinha sido preso. Agora me sinto mais aliviada”. O testemunho é de uma potiguar de 36 anos que foi estuprada quando criança, e que mesmo após mais de duas décadas ainda busca forças para curar as dores do passado. Forças que, por meio de um projeto pioneiro e único no país, o Ministério Público do Rio Grande do Norte está ajudando a encontrar.
Combater a impunidade é a missão principal do projeto ‘Memória’. Criado em 2017, ele é desenvolvido no estado pela Coordenadoria de Investigações Especiais do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco). E os objetivos são justamente estes: desengavetar crimes antigos, quase que totalmente esquecidos, capturar os foragidos e levar os criminosos a julgamento.
“Eu era apenas uma criança, mas jamais vou esquecer o que houve. Agora, sabendo que ele vai pagar pelo crime que cometeu, isso me ajuda muito a aguentar a dor. E isso eu devo aos promotores que não deixaram o caso que aconteceu comigo sem uma resposta. Obrigada!”, agradeceu a mulher.
A vítima do abuso, que hoje mora em uma cidade da região Oeste potiguar, disse ao G1 que não quer ser identificada. “E ela tem todo o direito de permanecer no anonimato, de se resguardar, de ser preservada. O que não pode é o criminoso fugir e ficar impune. Este sim, precisa ser encontrado, levado a julgamento e devidamente punido nas formas da lei”, ressaltou o promotor Fausto França, coordenador do Gaeco.
7.692 mandados em aberto
De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Rio Grande do Norte possui 7.692 mandados de prisão em aberto atualmente. “Porém, diante do enorme volume de mandados de prisão, foi preciso elencar critérios baseados na gravidade dos casos e no risco de prescrição”, explicou o promotor.
“Decidimos priorizar crimes graves, cometidos antes de 2000 e cujas penas são superiores a 6 anos de prisão em regime fechado, como casos de homicídio, latrocínio (roubo seguido de morte), estupro e tortura”, acrescentou França. “Realizamos um minucioso cruzamento de dados e chegamos a um total de 255 mandados de prisão que se encaixam nos critérios firmados”, revelou.
Desde 2017, e mesmo diante da complexidade dos casos, o Gaeco conseguiu prender 27 foragidos da Justiça. Boa parte deles, segundo o promotor, foi localizada no próprio Rio Grande do Norte, mas alguns foram encontrados residindo em outros estados. Prisões foram feitas, por exemplo, no Acre, Rio de Janeiro, Paraná, Ceará e São Paulo.
Gratidão
A prisão ocorrida no Acre, em janeiro de 2017, foi uma das primeiras realizadas a partir do projeto Memória. Foragido, Luiz Lobo Neto era acusado de matar o advogado Antonino Benevides Filho, crime que aconteceu no dia 13 de janeiro de 1992 na cidade de Caraúbas, no Oeste potiguar. Agentes da Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) de Rio Branco deram apoio à operação.
De acordo com a denúncia, o acusado é um dos dois pistoleiros contratados para matar o advogado. O mandante do crime dirigiu o carro que conduziu os assassinos até a casa da vítima. O crime teria sido motivado por uma desavença familiar.
“Eu tinha apenas 2 anos quando o crime aconteceu. Cresci sem meu pai, sem a lembrança paterna, sem conhecê-lo. Para mim e para toda a minha família foi uma surpresa quando saiu na televisão a notícia da prisão do assassino”, disse Daniele Benevides, filha do advogado.
“Agora, o sentimento que nós temos é de gratidão, um sentimento bom, até de certa forma… bom porque o assassino foi encontrado e preso. Agora, ele e os outros envolvidos precisam ser condenados. Meu pai não vai voltar, mas é bom saber que a morte dele não vai ficar impune”, concluiu.
Luiz Lobo Neto está preso e aguarda julgamento.
Esforços gigantes
Para Fausto França, o trabalho realizado pelo Gaeco tem um viés de controle externo da atividade policial na medida em que o projeto produz conhecimento, usando de suas bases de dados e de seu pessoal especializado como mecanismo de apoio para dar linhas de pesquisa à Polícia Civil quanto ao paradeiro do foragido.
“Todavia, em contrapartida, o projeto Memória cobra e fiscaliza a efetividade do trabalho policial, estabelecendo metas e tarefas para o cumprimento dos mandados e, finalmente, realiza eventos para capacitação, integração com a polícia judiciária e compartilhamento das experiências buscando a melhoria dos serviços”, destacou.
“”Sabemos que o ideal seria que todo mandado de prisão fosse cumprido agilmente, em época contemporânea ao crime, mas o ideal é longe da realidade”.
Ainda segundo França, no dia a dia dos órgãos que atuam na área criminal, “não é incomum mandados de prisão e ações penais antigos, mesmo de crimes gravíssimos acabarem esquecidos, atropelados pelas conhecidas dificuldades estruturais e pela cobrança em razão de outros fatos também igualmente graves e mais recentes, que acabam pautando a atuação”, frisou. Porém, o promotor reforça “que muitos desses processos representaram esforços gigantes de outras gerações de policiais, promotores e magistrados, que inclusive não tinham a estrutura atual, de modo que, sobretudo, em respeito às vítimas, mas também a esses profissionais e pela energia que o Estado empregou lá atrás – e também pelo risco de reiteração criminosa – ou seja, do foragido voltar a cometer crimes, o MP entende que o foco em casos antigos e graves merece a atenção dos operadores da área, com vista a dar efetividade à prestação da Justiça, e que ainda que venha tarde, não falhe”, pontuou.
Prosopografia
Um dos casos mais emblemáticos do projeto Memória foi a prisão do pedreiro Gilson Pegado da Silva, que foi preso em outubro do ano passado no Rio de Janeiro. Foragido da Justiça até então, ele era acusado de matar, com 23 facadas, a publicitária Sílvia Mannu. O crime aconteceu em 1997 na Vila de Ponta Negra, na Zona Sul de Natal. A filha da vítima, uma menina de 3 anos, viu a mãe ser morta. Gilson chegou a ser preso no mesmo dia, mas passou a responder pelo crime em liberdade e fugiu.
Após ser preso, Gilson foi trazido de volta a Natal e julgado em março deste ano pelo crime de latrocínio. Ele foi condenado a 21 anos e seis meses de prisão. Após condenado, ele retornou ao Rio de Janeiro, e atualmente permanece custodiado no Presídio Evaristo de Morais, em São Cristóvão.
O G1 descobriu que a família da publicitária mora fora do país, e não foi possível contato.
Procurados
Em meio ao universo de mais de 200 mandados de foragidos que atualmente estão na mira do projeto Memória, o coordenador do Gaeco passou ao G1 dois casos considerados de difícil solução, uma vez que dependem, atualmente, quase que exclusivamente de denúncias para que foragidos possam ser localizados. São eles:
- João Maria Ferreira da Silva, de 51 anos, mais conhecido como Chapinha. Ajudante de mecânico, ele é condenado a 23 anos e 4 meses de prisão por latrocínio. O crime aconteceu em 1991, no bairro das Rocas, Zona Leste de Natal.
- Francineide Basílio da Silva, que tem aproximadamente 50 anos. Dona de casa, ela é condenada a 25 anos e dois meses de prisão por tráfico de drogas, homicídio e autoacusação falsa.
Denúncias
A população pode colaborar com o Ministério Público do RN na localização de criminosos. Para isso, o órgão oferece um canal direto para denúncias de crimes em geral. É o Disque Denúncia 127. A identidade da fonte é preservada.
Além do telefone, as denúncias também podem ser encaminhadas via WhatsApp para o número (84) 98863-4585 ou e-mail para denuncia@mprn.mp.br.
Os cidadãos podem encaminhar informações em geral que possam levar à prisão de criminosos, denunciar atos de corrupção e crimes de qualquer natureza. Pelo aplicativo são aceitos textos, fotos, áudios e vídeos que possam comprovar as informações oferecidas.
G1/RN